Passava por aquela quinta muito de vez em
quando… e aquelas imagens não me saíam da cabeça. Era uma pequena quinta
murada, com um portão senhorial, alto, em ferro, quase sempre fechado e que
vedava o acesso de quantos passavam. Logo a seguir à entrada um pequeno lago
com nenúfares e, a partir daí, linhas infindáveis de árvores de fruto,
pessegueiros, macieiras, pereiras, laranjeiras… todas muito bem tratadas num
cenário de imensas cores que prendia a atenção de quem passava e que atiçava a
imaginação… Para mim era o Jardim do Paraíso!
De quem era aquele pomar? Quem o
tratava? Quando passava por ali, estava sempre fechado, deserto, e admirava-o
logo desde que o vislumbrava ao longe a seguir ao Jardim do Sameiro, ao pé do
edifício da Escola Industrial de Penafiel (o antigo orfanato feminino), passava
em frente ao austero portão e à medida que percorria a estrada que serpenteava
por entre as casas e quintas em direção ao vale do rio Cavalum em Milhundos.Bilhete Postal Ilustrado Parque do Santuário lado sul e orfanato feminino, cerca de 1930 - Biblioteca Municipal de Penafiel |
No início dos anos 70, talvez por
volta de 1972 no início do verão, teria eu 8 anos. Tive finalmente coragem para
o enfrentar, de entrar naquele jardim proibido! Com a minha irmã Fátima, quase
dois anos mais velha, juntamos as coragens e combinamos lá entrar, para
podermos comer algumas frutas das árvores do jardim…
Aquela tarde começou com a emoção
intensa da aventura, de que estávamos a descobrir algo desejado há muito tempo,
mas havia também uma dúvida a pesar na consciência!... O portão estava fechado,
mas reparamos com alívio que não estava trancado! Transpusemo-lo e fechamos o
portão nas nossas costas, o jardim estava conquistado!
O lago dos nenúfares, mais bonito
ainda do que parecia visto de fora, era o centro de uma plataforma que encimava
todo o pomar, com filas e filas de árvores a perder de vista. Descemos umas
pequenas escadas encostadas ao muro e deparamo-nos logo com as primeiras
árvores, altas e carregadas de frutos.
Após uma pequena incursão entre as árvores
para escolher os frutos mais atraentes e apetecíveis e ainda indecisos de quais
escolher, ouvimos um barulho junto ao portão, era o vigilante do pomar!
Encostámo-nos ao muro protegidos por uma árvore, com o coração aos pulos e o
desespero de estarmos encurralados numa ratoeira!
O Vigilante segurou o portão com a
mão, divisou um e outro lado do pomar e após certificar-se que estava tudo bem,
saiu e voltou a fechar o portão, o que nos transmitiu uma sensação de enorme
alívio…
O espírito de aventura tinha
terminado, naquele momento foi só agarrar rapidamente nalguns frutos, metê-los
dentro da camisa e voltar para a segurança de casa. No entanto, ao chegarmos ao
portão o Vigilante estava uma vintena de metros à frente a falar com o condutor
de um veículo de transporte que ladeava a estrada. Como não havia maneira de se
irem embora pois a conversa parecia não ter fim, decidimos arriscar, pois o
Vigilante estava de costas para o portão do jardim e para o caminho que
teríamos de fazer.
Saímos de mansinho e iniciamos o
caminho e só então reparamos que estava um miúdo, mais novo do que nós, no
lugar de trás do veículo, de pé junto à janela e a presenciar a conversa. O seu
olhar saltou ao ver-nos, pois naquele instante percebeu o que tínhamos feito…
Olhava ansioso para os dois homens, queria interromper a conversa para
contar a sua descoberta. Nós íamos caminhando naquele desespero infindável, o
miúdo continuava a tentar interromper a conversa, mas graças a Deus não
conseguia… Olhávamos para trás de vez em
quando e fomos ganhando alívio e confiança à medida que nos afastávamos!...
Antes de virarmos a esquina no
edifício da Escola Industrial e entrarmos no Jardim do Sameiro, aprendi uma
lição que sustentou a construção dos meus valores e princípios para a vida, que
o Jardim do Paraíso tinha frutos proibidos! Souberam-nos muito bem os frutos
que colhemos, mas as maçãs demasiado verdes provocaram-nos uma dor de barriga
que nos serviu de castigo e nos expulsou da ideia lá voltarmos tão cedo!
Uns anos mais tarde aquela pequena
quinta foi expropriada e desmantelada. Construíram à frente do lago de nenúfares
uma estrada de acesso para a nova escola do Ciclo Preparatório. O lago ainda
existe, no entanto está seco há muito tempo… mas os nenúfares e aquele jardim existem algures…
quanto mais não seja nas minhas memórias!